2 de nov. de 2013

NAU DA INSENSATEZ

DOMINGOS MEIRELLES

O Conselho Deliberativo da Associação Brasileira de Imprensa, que se reuniu pela primeira  vez na última terça-feira de outubro, quatro dias após a morte de Maurício Azêdo, não se preocupou com o luto. Não prestou qualquer homenagem póstuma ao companheiro que ocupava, sub judice, a presidência da entidade, desde a última eleição em abril passado. Não se pediu sequer um minuto de silêncio em memória do seu falecimento. O que se viu naquela tarde de 29 de outubro foi um espetáculo degradante, vergonhoso, incompatível com as melhores tradições da ABI. Não foi uma reunião para lembrar a perda do presidente que escolhera a dedo cada um dos integrantes daquele Conselho.

Não se podia imaginar que, naquela sessão, os conselheiros por ele ungidos deixassem de promover algum tipo de manifestação pela morte de um companheiro que todos sabiam enfrentar graves problemas cardíacos desde 2009.  Conduzido por interesses inconfessáveis, o Conselho comportou-se de forma aviltante. Não se ouviu uma palavra que traduzisse pesar   ou tristeza. Era como se o presidente morto há quatro dias jamais tivesse existido. "Rei morto, rei posto", diz o velho ditado popular que foi seguido à risca, naquela sombria tarde de terça-feira. Azêdo jamais  também poderia supor que seria vítima de um dos seus maiores pecados. Nenhuma das carpideiras que escreveram textos lacrimosos no site da ABI,  onde lamentavam sua morte e exaltavam suas virtudes, lembrou-se de pranteá-lo durante a sessão. Uma lápide de silêncios foi depositada sobre a sua vida e o seu passado, por todos aqueles a quem retirara do limbo, oferecendo-lhes uma visibilidade que não mereciam.

Os critérios que sempre norteavam Azêdo na escolha dos integrantes do Conselho Deliberativo jamais repousavam em méritos pessoais ou de natureza profissional. O que exigia dos escolhidos, com raríssimas exceções, era lealdade, obediência e submissão. Não apenas por autoritarismo, traço que tanto o caracterizava, mas para que não interferissem no trabalho que fazia com afinco, meticulosamente, como escravo de uma personalidade centralizadora e perfeccionista, refratária a qualquer tipo de crítica.

Maurício Azêdo sempre preferiu um Conselho subalterno, dócil e omisso. Um rebanho que não tivesse competência para contestá-lo ou criar embaraços ao projeto pessoal do qual considerava-se o único artífice capaz de executá-lo com eficiência: construir uma ABI que superasse a de Barbosa Lima Sobrinho. Acreditava que sua gestão o eternizaria como o melhor presidente da história da instituição.

Na condução da ABI, Azêdo cometeu erros comuns à espécie humana, potencializados pela sua própria estatura de jornalista competente – redator irrepreensível, orador brilhante, um homem reconhecido pelo temperamento difícil, tanto quanto pelo senso ético, às vezes quase desumano com aqueles a quem não valorava. Seu gênio esquentado o fez tornar-se  muitas vezes impiedoso e extremamente injusto com inimigos reais ou imaginários que pareciam persegui-lo, como uma sombra, ao longo da vida.

A primeira reunião do Conselho da ABI sem o comando do seu mentor permitiu que aflorasse o pior dos erros que Maurício Azêdo poderia ter cometido na condução da instituição: a escolha de pessoas sem biografia e ossatura de caráter. Os eventos que marcaram a reunião do Conselho Deliberativo, naquela tarde de 29 de outubro, foram indignos e repulsivos. As ambições mais mesquinhas floresceram, de repente, de forma deplorável. As máscaras se desafivelaram e as ambições  de cada um começaram a se exibir sem disfarces, de corpo inteiro, revelando sua verdadeira face. Sem a presença do líder, que jamais permitiria aquela ópera bufa, ocorreram irregularidades, transgressões, agressões verbais, preocupantes manifestações de histeria, reinterpretações oportunistas das regras estatutárias,  além de violações dos mais comezinhos princípios da ética e do Direito.

A primeira reunião dos deserdados foi cenário de cenas estarrecedoras. O episódio mais abjeto e constrangedor, impensável numa instituição com  tradição democrática da ABI, foi a cassação ilegal do mandato do vice-presidente Tarcísio Holanda, comandado pelo presidente do Conselho, Peri Cotta. Espelhando-se num dos piores exemplos da ditadura militar, Peri impediu a posse de Tarcísio utilizando-se do mesmo artifício usado pelo Alto Comando do Exército ao impedir que o  vice Pedro Aleixo assumisse a Presidência da República com o afastamento por doença do marechal Arthur da Costa e Silva. Os detalhes da sórdida cassação de Aleixo foram, inclusive, reproduzidos com extraordinário talento por Zuenir Ventura no livro " 1968 - O ano que não terminou ".

Tarcísio Holanda, um dos profissionais mais respeitados da sua geração,  foi  humilhado por uma horda enlouquecida de golpistas, alinhados com Peri e o ex-oficial de Marinha Milton Temer que operava, em plenário, os apoiamentos à cassação, através de tenebrosos acordos de convés. Num gesto tresloucado queriam, inicialmente, que ele renunciasse. Como Tarcísio resistiu, foi apunhalado sem compaixão pelos seus próprios companheiros.
Ancorado num  inconsistente "parecer jurídico" encomendado ao escritório de advocacia Siqueira Castro, o mesmo que defende a chapa Prudente de Morais, Peri declarou vago o cargo de vice-presidente. Ao arrepio da lei, como  fez o Alto-Comando do Exército, em 1969, o presidente do Conselho determinou que fosse escolhido outro nome para a sucessão de Maurício Azêdo.

O vice-presidente Tarcísio Holanda, que veio de Brasília especialmente para assumir o cargo, acusou Peri e seus cambonos de capitanearem um "golpe de Estado", atitude inaceitável numa instituição como a ABI. Lembrou que sempre desfrutara da confiança pessoal de  Azêdo, de quem era amigo há mais de 50 anos, e a quem substituíra, inclusive, em várias oportunidades como presidente da Casa. Ninguém lhe deu ouvidos. Transtornado diante de tamanha demonstração de frieza e cinismo, desabafou em voz alta para que todos ouvissem: - A presença de vocês me enoja.

Como Tarcísio recusava-se a renunciar ao cargo para o qual fora eleito, em 2010, juntamente com a maioria dos presentes, Peri resolveu submeter ao plenário a proposta de transformar a reunião ordinária em reunião extraordinária, a fim de legitimar o "golpe de Estado".  Ao ser contestado por não cumprir a regra da convocação pública, estabelecida pelo Estatuto, para os casos de reuniões extraordinárias, Peri respondeu, com arrogância: “sou o presidente do Conselho e tenho poder até para extinguir a ABI”.

E assim, sem que houvesse uma convocação do corpo social, os membros do Conselho amancebados com Peri, Temer, Miranda Sá e Mário Augusto Jacobskind aprovaram a decisão. A intenção clara, ao entardecer daquela terça-feira, era tomar de assalto o controle da ABI. Com base no  gelatinoso parecer jurídico que autorizava não empossar o vice em caso de vacância, o presidente sub judice do Conselho Deliberativo lançou a candidatura  do Diretor Administrativo, Fichel David Chargel, igualmente sub judice, para ser votada naquele momento. E assim o golpe se concretizou. Chargel assumiu, de forma enviesada,  a presidência da Associação Brasileira de Imprensa até que a Justiça se manifeste sobre essa estultice.

Do currículo de Chargel sabe-se pouco, além de sua atuação na imprensa como diagramador e que teria trabalhado com Azêdo na Câmara e no Tribunal de Contas do Município. Foi também diretor do Sindicato dos Jornalistas do Município do Rio de Janeiro. Chargel orgulha-se de ter sido um dos fundadores da Cooperativa dos Profissionais de Imprensa do Rio de Janeiro, a finada COOPIM, que desapareceu sob seu comando, após desastrada administração. Os sócios da cooperativa até hoje desconhecem o destino do patrimônio da entidade dissolvida em 1986.

O novo presidente da Casa dos Jornalistas é, na verdade, apenas um balão de ensaio. Um  teste engendrado para utilizar a instituição como uma espécie de laboratório político. As hienas que rondam a agonizante ABI parecem ter projetos ainda mais ambiciosos. Quando a titular da 8ª Vara Cível marcar novas eleições, vão substituir Chargel por outro nome para disputar a presidência da Casa. Acreditam que a direção da entidade seja o caminho mais fácil para catapultar uma candidatura ao Senado, como denunciou uma das poucas vozes do Conselho contrária à partidarização  da ABI.

O espetáculo grotesco da reunião de 29 de outubro expõe com nitidez as digitais dessas personagens em alguns dos fatos que se encontram nas mãos da Justiça. E talvez expliquem as atitudes estranhas protagonizadas por Azêdo ao tentar manter-se na presidência da ABI pelo quarto mandato consecutivo, ao custo de sua própria biografia, impedindo de maneira fraudulenta a participação legítima de uma chapa adversária. Não era o estilo de Maurício Azêdo. As contradições demonstram que ele talvez já não tivesse condições físicas de comandar a instituição. São cada vez mais evidentes os indícios de que pudesse estar sendo manipulado. Apesar da saúde precária, era insuflado pelos seus pares a permanecer sempre na linha de frente, como um gladiador romano. A maioria dos seus protegidos, entretanto, não se expunha. Azêdo ficou praticamente só na tarefa de defender as irregularidades cometidas durante o processo eleitoral com a conivência de todos os integrantes do grupo que liderava. Os graves problemas enfrentados pela ABI e o abandono dos seus pares, que o deixaram com a  responsabilidade de sustentar sozinho o ônus de toda a campanha, acabariam minando suas forças,  além de revelar o tipo de gente que o adulava.

Os fatos falam por si. Na campanha que o elegeu pela primeira vez, em 2004,  a luta também foi difícil, mas não houve da parte dele o recurso a atitudes menores em momento algum. A luta foi limpa e honrada. A primeira diretoria eleita com ele, entretanto, sofreu uma baixa considerável em seus primeiros meses de mandato. Azêdo identificou atitudes inconciliáveis com o seu rigoroso senso ético em alguns dos seus membros que se viram obrigados a se afastar. Uma história que ainda há de ser contada. Estranhamente, esses mesmos personagens estão agora de volta em um Conselho contestado na Justiça.

Outra situação que aponta para a possível debilidade de Azêdo foi a publicação de um jornal de divulgação da campanha pelo seu quarto mandato,  onde o nome do patrono da chapa, no cabeçalho, estava escrito errado – Prudente de Morais, neto é a forma correta e ele fazia questão até mesmo da vírgula, e “neto” com letra minúscula. No jornal, Morais estava escrito com “e”. Esse erro ele jamais deixaria passar.

As ações vergonhosas para impedir que a chapa de oposição Vladimir Herzog disputasse a última eleição também são contraditórias e não combinam com o estilo de Maurício Azêdo, acima de tudo porque foram trapalhadas que ofendem até mesmo inteligências medianas, como a emissão de um cheque pessoal para quitar débitos de 17 integrantes da chapa da situação. O mesmo privilégio, regularizar as dívidas no balcão da Tesouraria, foi negado à oposição. Os membros da chapa Vladimir Herzog só poderiam pagar as mensalidades em atraso através de boleto bancário. Esses boletos, entretanto, jamais foram expedidos pela ABI. E mais: o cheque de Azêdo, anexado aos autos do processo, traz a relação nominal, de próprio punho, de quem estava com a mensalidade sendo por ele quitada, o que se constituiu em mais uma prova material,  entre as muitas ilicitudes cometidas pelo então presidente da Casa.

Na tentativa de regularizar a situação dos membros da própria chapa, outro engano que Azêdo, em condições normais, certamente jamais cometeria: confundiu-se com nomes de dois sócios irmãos e acabou quitando a mensalidade do jornalista Tim Lopes, morto em 2002. Maurício Azêdo não cometeria esse engano, porque tinha uma memória prodigiosa e não esqueceria o nome de Tim Lopes, assim como não erraria no sobrenome do patrono de sua chapa.

Azêdo talvez não imaginasse que o coração que se fortalecia nas disputas e batalhas fosse abandoná-lo em meio a uma situação tão difícil; menos ainda que deixaria como herança um Conselho que macula a sua memória. A ABI é uma nau que estancou no atoleiro da insensatez e está sendo invadida pelos ratos do oportunismo.


Um comentário:

  1. Essa matéria reflete em parte a personalidade de Maurício Azêdo. Ele era impulsivo, às vezes autoritário, fora esses aspectos eleitorais da ABI, era eticamente irreprochável. Mas falando em autoritarismo, a chapa Vladimir Herzog, assassinado pela ditadura militar, tem em seus quadros um que foi porta-voz do regime militar: o jornalista VILLAS-BOAS.

    ResponderExcluir

Deixe aqui seu comentário.